Viagens, culturas, aventuras, montanhas, escaladas, trilhas, fotografia e filmes da natureza.

“Para viajar basta existir. ... Fernando Pessoa

16 de março de 2010

Enfim, o supremo da Africa, o Kilimanjaro

Apos anos de imagens, o contorno se forma na linha do horizonte. No final das nove horas de viagem de onibus entre Dar Es Salaam e Moshi, o gigante se eleva, na vasta planicie da Tanzania.
O plano e enfrentar a subida direta pela rota conhecida por Western Branch, reaberta ha algum tempo apos alguns incidentes. Em janeiro de 2006 ela foi fechada apos quatro pessoas morrerem por deslizamento de rochas. O guia e obrigatorio no parque e mais o porteador para transportar comida e barracas, somos em 3 pessoas no grupo. O porteador tambem me auxiliaria em carregar parte do meu peso no dia do ataque ao cume, pegando uma rota paralela diretamente para o acampamento Millenium, ja na rota de descida.
Partimos do portao Machame, onde a rota homonima e uma das mais populares. Varias expedicoes se preparavam para saida. O peso dos porteadores e controlado pelos guardaparques: 20 quilos por pessoa. O primeiro dia, a subida e leve e tranquila ate o Machame Hut. O que pesou foram as chuvas torrenciais que nem as grandes arvores da floresta conseguiram segurar. A quase 3000 metros de altitude ja faz frio, e com as roupas molhadas se tornou congelante. Pelo menos nos livra dos mosquitos. Depois da chuva, o ceu azul aparece e tenho a primeira vista do cume do Kibo. O Kilimanjaro e formado por 3 vulcoes, 3 explosoes do passado. A primeira e Shira, mais antiga, a segunda Mawenza e a ultima e mais alta e chamada de Kibo.
No segundo dia a subida se acentua ate o acampamento Shira, nao leva mais que cinco horas. A chuva comeca a cessar transformando agora em meros chuviscos. O terceiro dia separa os grupos ao nivel das nuvens. Quem faz a rota Machame so faz uma caminhada de aclimatacao por Lava Tower, a 4630m , depois desce para Barranco Hut. Nos montamos as barracas em Lava Tower fazendo companhia a um outro grupo ja estabelecido. Meu guia sentindo o peso de um grupo reduzido (normalmente uma expedicao conta com 2 porteadores por pessoa, fora cozinheiro e guias) decide alterar os planos e acampar no Barrafu Hut, mais proximo ao cume. Para isso teremos que carregar todo o peso morro acima, inclusive meus 15 quilos de mochila. Nunca havia carregado tanto peso no dia do ataque ao cume, temi a subida.
Dia seguinte acampamos em Arrow Glacier a 4876m, distante apenas a uma hora e meia de Lava Tower, aos pes da parede, uma mistura de gelo e rocha. Comecei a ter sintomas de altitude: dor de cabeca e falta de apetite. A insonia nessa noite talvez ocorreu pelo fato de ter dormido a tarde inteira ou pela tensao do que me esperava no dia seguinte.
A partir da meia noite nao dormi mais. O vento comia la fora e nao me animei a me mexer ate as 3 horas da manha, horario combinado para despertar. Apos um breve cafe da manha, la pelas quatro horas partimos montanha acima. O solo vulcanico e quebradico e move a favor da gravidade principalmente nas partes mais inclinadas.
Sinto o peso nas costas cada vez mais que a altitude se eleva. Ha muitas partes de gelo e gracas ao meu piolet, Ali cava pequenas escadas nas rampas perigosas. Sem cordas e seguranca, so olhava morro abaixo sem muita imaginacao de onde iria parar se houvesse um escorregao.
O sol nasce iluminando o grande Monte Meru acompanhado pela sombra do nosso cume quilometros de distancia. Minhas forcas vao se esvaindo, combinando os poucos dias de aclimatacao e os quilos nas costas. Peco ajuda para meu guia nas ultimas horas de escalaminhada.
Depois de quase 8 horas chegamos ao topo da subida. Estava acabada. Normalmente se leva entre 4 e 5 horas esse trajeto. Eu crucificava meu guia por ter me feito subir com tanto peso. Para agravar Ali perdeu seus oculos escuros e sua visao comecava a ficar prejudicada.
A superficie do topo e grande, com grandes blocos de gelo flutuando sobre o solo rochoso e o pico Uhuru, o ponto mais alto. O plano de conhecer a cratera foi agua abaixo devido a hora avancada e meu estado lastimavel. Pelo menos o Uhuru peak acho que consigo subir. Caminhamos ate o Crater Camp e comecamos a trilha direta para o Uhuru. Apos alguns tempo, Ali percebe muita neve na trilha e muda de planos novamente. Vamos descer e ir para Stella Point e subir de la.
Caminhava fraquissima, aos tropecos, com a sencacao de que iria morrer a qualquer hora, falencia multipla. Esse sentimento de altitude e possivel, falta oxigenio no cerebro e nos musculos. Quando chegamos em Stella Point ja pensava em desistir do pico. Pensava em descer e descansar. Perguntei se poderia voltar no dia seguinte, se me sentisse melhor.
A resposta foi um silencio.
Baixei a cabeca, mergulhei no vazio, e agora?
Quando levantei o olhar e virei a cabeca em direcao ao pico, consegui avistar o marco do Uhuru peak ao longe, e com uma subida nao muito acentuada.
Se essa e minha unica chance, nao sou de desistir do cume. Vou tentar, vamos la.
Deixamos tudo, todo o peso em Stella Point e comecamos a caminhar 'pole pole', lentamente, passo a passo. O sol ja arrebentava parte do meu rosto exposto. Entre terra e neve avancava as ultimas rampas. Nem estava acreditando, eu iria conseguir!
Quase duas horas depois, avisto as placas de madeira no final do penhasco. Porque tudo tem que ser tao longe?
As placas vao se aproximando. Ao chegar aos pes do marco, sento no solo, exausta.
O Kilimanjaro tem fama de nao ser um cume tao dificil e nao achava que iria me emocionar. Depois de todo o esforco e complicacoes, nao deixou de acontecer. Lagrimas sairam dos meus olhos ja inchados pela altitude e pouco hidratacao. Eu estava la.
As nuvens rodeiam o vasto cume. Apos a tradicional sessao de fotos, comecamos a outra metade do martirio.
A descida ate Stella Point foi tranquila, cruzamos com um ultimo grupo ainda subindo. O problema foi pegar minha mochila novamente. A velocidade diminuiu, nao conseguia coordenar minhas pernas para descer rapido. Avistava o acampamento ao longe. A descida segue por ziguezagues em areia vulcanica. O grupo que cruzamos na descida ja me ultrapassava. As barracas ao longe continuavam minusculas. O sol comecou a se recolher.
Na penumbra do anoitecer, desciamos a ulltima rampa em direcao as barracas.
Nem consegui ajudar Ali a montar a barraca. Ele pediu auxilio de uma outra pessoa. Entrei no meu ninho, deitei e nao me mexi ate o dia seguinte.
Pela manha, Ali aparece na porta da minha barraca, sua visao estava mal. Meus musculos estavam cansados. Caminhamos lentamente montanha abaixo. Chegamos no acampamento Millenium e Jumar nos preparou um belo cafe da manha. Estavamos famintos apos um dia de ataque ao cume sem quase comer direito ha 30 horas. A descida sempre monotona so era quebrada por guias e porteadores que utilizam a rota Mweka por ser a mais curta. Levamos 5 horas do acampamento ate o portao de controle. Meus dedoes do pe latejavam de dor da pressao da descida. Um taxi nos esperava prontamente. Salve Dullah! Recebi meu certificado e meu corpo senta dentro do carro aliviado, acostumando rapidamente com os prazeres da civilizacao.
A escalada ao Kilimanjaro nao e tecnica, nem quando tento complicar um pouco com a rota mais dificil. A Western Branch e uma escalaminhada com alguns trechos expostos. O desafio continua a ser a altitude no curto prazo de aclimatacao, e no meu caso, agravado pelo peso da mochila. O misticismo envolvido no historico dessa montanha e sua imagem vista ao longe o faz uma escalada especial, entre uma cultura de povos tribais dessa terra que hoje chama Tanzania.

Um comentário:

  1. Eu te falei que era pra desistir se tivesse passando mal, lesada, teimosa...
    pelo menos tirou foto da cara tostada?

    ResponderExcluir